Alberte Pagán. Um pintor de estojos, fumador de ópio, recebe a visita dum desconhecido que di ser seu tio. Quando o anfitriom vai buscar vinho ve por um bufardo a cena primigénia do relato: umha mulher/anjo vestida de negro oferece umha flor a um velho yogi que senta baixo um cipreste; um rego os separa; ela quer cruzar mas tropeça e cai, ante os exagerados risos do velho. Esta é a cena que obsessiona ao home e que pinta nos estojos umha e outra vez. Pouco despois a mulher/anjo aparece na porta do narrador, entra na casa, deita-se no leito. Está morta, vermes na carne. O narrador, após deitar-se com ela, despeça-a e leva os anacos numha maleta até um cemitério coa ajuda dum cocheiro/trapeiro/enterrador. O moucho do título é a sombra do narrador na parede, a única que pode chegar a entender a sua narraçom, escrita “para asegurar-me de que estes sucessos nom som produto da minha imaginaçom”.
Na segunda parte o narrador pom-se a redactar a sua autobiografia. Fala da mulher (a “rameira”, umha meio irmá) coa que casou mas que nom lhe permite ter relaçons sexuais com ela; do pai que era gêmeo do seu tio e nom há certeza de quem é o verdadeiro progenitor; da mulher que o coida que é a nai da sua esposa… Os tempos confundem-se, as personages transmigram dumha a outra, a realidade esvai-se nos sonhos do ópio. Figuras e sexos confundem-se: O narrador aperta e beixa a um cunhado tal e como fazia coa sua esposa e coa mulher/anjo; a sua neneira “poderia ter-me usado como parelha lésbica, como irmá adoptiva”. Finalmente deita-se coa sua esposa, à que acaba acoitelando. As palavras que descrevem o feito, e incluso o sabor amargo a pepino, som as mesmas usadas para descrever a mulher/anjo. Ao final o narrador entra numha segunda vida e ressurge convertido no velho trapeiro, que é o yogi, que é o enterrador, que é o tio. E os vermes instalam-se, por fim, no seu corpo.
Este é um dos possíveis argumentos da novela curta O moucho cego (Buf-e kur), publicada na Índia em 1937 polo escritor persa Sadegh Hedayat (1903-1951). O moucho cego mostra a vida como pesadelo; a narraçom é umha confissom onírica e umha viage pola condiçom humana. Nom há linearidade narrativa, o tempo é cíclico, as mesmas cenas repetem-se com variantes. O enterrador, que di conhecer ao protagonista, voltará-se topar com el à volta do cemitério, e a mesma conversa repete-se, como se fosse a primeira vez que se encontram.
Franz Kafka, Edgar Allan Poe e Rainer Maria Rilke som influências directas. Mas para tirar todo o significado da escura simbologia da novela temos que ir cara ao Leste: O Livro dos mortos tibetano e o Buddhacarita (“os actos de Buda”) som as obras que nos permitem desenredar a estrutura e a complexidade dos símbolos utilizados. O quarto do narrador é umha tumba, o narrador está morto e a novela nom é mais que a sua viage polo mundo dos mortos até acadar a resurreiçom. E a escritura nom é senom um intento de conservar a memória e portanto a essência da persoa, é dizer, um jeito de escapar da desapariçom total, da morte absoluta.
O texto tem adquirido status mítico em Irám e pronto foi traduzido ao francês (La Chouette aveugle) para converter-se num dos favoritos do grupo surrealista. Temos tamém traduçom inglesa, The Blind Owl, e espanhola, La lechuza ciega. E tamém, apesar de ser umha novela dificilmente adaptável, existem meia dúzia de versons cinematográficas. A primeira delas quiçá seja The Blind Owl, feita polo iraniano Bozorgmehr Rafia em 1973 nos EUA. Em 1975 Kiumars Derambakhsh rodou Buf-e kur para a Televisom Nacional do Irám. Nesta película a voz narradora recolhe o texto da novela (“Todos somos filhos da morte”) entanto as images ilustram a visita do tio, o pintor espreitando polo bufardo a cena da mulher oferecendo um ramo de flores ao velho ao outro lado do rego, a morte e despeçamento da mulher que se deita no seu leito, a maleta co cadáver e a ajuda do cocheiro, e como ao final, de regresso ao seu quarto, se converte el mesmo no trapeiro.
Em 1992 o director teatral Reza Abdoh filmou The Blind Owl, a sua única longametrage. Nado no Irám, o cineasta alude directamente ao escritor persa desde o título, mas o argumento da sua película nada tem que ver co mundo de Hedayat, a nom ser o toque surrealista, a ausência de linearidade narrativa, e o espírito existencialista das personages sofrentes que nom som conscientes do seu destino, vítimas dumha sociedade kafkiana.
Mazdak Taebi, tamém nado no Irám, realizou no Canadá The Blind Owl/La Chouette aveugle em 2018. Taebi ilustra unicamente a primeira parte da novela deixando de lado, como figera Derambakhsh, a vida persoal e doméstica do protagonista. O bufardo polo que o narrador espreita à mulher/anjo é nesta versom um televisor no que se reproduz a cena primigénia: a moça oferece o seu ramo de flores a um velho sentado num parque; nom há rego entre eles, só a vereda. A película de Taebi é moi visual, com apenas diálogos; o protagonista é pintor e fumador de ópio; e o jogo entre realidade e sonho soluciona-se por meio do televisor, que serve de janela entre um mundo e o outro. Cara ao final o protagonista estende a mao cara à pantalha e nesse momento entra em quadro, no televisor, a sua mao estendida: ambos mundos fusionam-se. Umha foto de Hedayat decora a parede do quarto.
Todas estas películas som adaptaçons parcialmente erradas, porque Buf-e kur é umha novela que nom se deixa ilustrar tam doadamente. Fazia falha um cineasta da categoria do chileno Raúl Ruiz, cum inerente espírito transgressor e surrealista, para fazer a melhor e mais fiel versom cinematográfica da novela. Digo fiel no espírito, porque a letra difere claramente do original. E quiçá seja essa a única maneira de fazer-lhe justiça a Hedayat.
Ruiz rodou a tenebrista La Chouette aveugle em 1987. O seu protagonista nom é pintor, senom projeccionista num cinema árabe num bairro de Paris. “Abandonade toda esperança, vós que entrades” é o epígrafe de Dante que enceta a película; e o plano seguinte mostra a entrada a umha sala de cine: o cinema como além no que habitam os mortos. A porta pola que o narrador acede ao mundo do além é a janelinha da cabina de projecçom. Através dela ve na pantalha a cena primigénia, desde a que umha bailarina (a mulher/anjo) cruza olhadas com el. A bailarina acudirá ao quarto do protagonista. No leito os vermes comem-lhe a cara. O projeccionista mete os anacos do seu cadáver num baú que, coa ajuda do tio, acabará num rio, braços e cabeça aboiando na água. A narraçom persoal que nos surprende a metade da novela de Hedayat (narraçom dentro da narraçom) converte-se aqui numha película dentro da película, de tom orientalista e na que falam um fictício espanhol antigo. Descobriremos que a cena da bailarina forma parte desta segunda narrativa, dentro de cuja diegese se retomam certos elementos da confissom do narrador da novela, como umha referência aos dous irmaos gêmeos, pai e tio do protagonista. Ao final, o narrador converte-se no seu tio. Todo acontece num só dia, durante o qual passam 50 anos.
La Chouette aveugle de Ruiz está “inspirada livremente” tanto na novela de Hedayat como em O condenado por desconfiado, de Tirso de Molina (obra à que se alude tangencialmente dentro da película orientalista). De feito, um título alternativo que aparece nos créditos iniciais é Le condamné.
¡¡ Qué tetrico !! Alberte, me ha costado leerlo, no obstante te diré que también estoy leyendo una novela de Alvaro Cunqueiro “Las crónicas del sochantre” en la que las personas que acompañan al sochantre son difuntos que le cuentan al protagonista a que se debió y como fue su muerte.
A pesar del tema, don Álvaro lo describe con su habitual retranca. Las que tú mencionas, creo que no me atrevería a leerlas.
De todos modos, a pesar del tema, has tejido una muy buena entrada para el Café barbantiano.
Cariñosos saludos palmeiráns.
Cara Magdalena, é o que tem o mundo dos mortos! E o mundo dos vivos, se temos em conta que a morte forma parte da vida!