Alberte Pagán. Cheguei à literatura de Kôbô Abe atravês do cinema de Hiroshi Teshigahara. A sua película Suna no onna (A mulher das dunas, 1963) impressionara-me pola força das images e o alcance surrealista e kafkiano do relato. Quando anos despois adquirim, na ilha de Moçambique, a novela na que se basea, pudem comprovar a energia dum grande novelista: Kôbô Abe sabe combinar surrealismo e realidade, fantasia e crítica social, narraçom e filosofia, Beckett e Kafka, dum jeito único.
Esta mistura improvável de crítica social e fantasmagoria é mais óbvia em Otoshiana (A trampa, 1962), outra película de Teshigahara com guiom e argumento de Abe na que um assassinato político, no mundo sindical mineiro, dá pé a um giro fantástico: o realismo mais sujo inça-se de pronto de mortos que caminham entre os vivos, sem possibilidade de comunicaçom entre eles.
A minha terceira parada no tandem Teshigahara-Abe foi Tanin no kao (O rosto de outrem, 1966), programada recentemente no Cineclube de Compostela. Um home desfigurado busca a ajuda dum cirurgiám para fazer-se umha máscara humana que o reconcílie coa sociedade e, sobre todo, coa sua esposa. As conversas entre médico e paciente estám enchidas de consideraçons filosóficas sobre a identidade humana, sobre as variadas máscaras que utilizamos (a maquilhage entre elas) e sobre os perigos de que o paciente desapareça fagocitado pola máscara, de que a identidade da máscara anule e substitua a identidade da persoa.
O rosto de outrem impressiona polos coidados e intensos enquadres, que lembram os d’A mulher das dunas. O início de ambas películas é formalmente similar, ainda que as implicaçons semánticas sejam opostas: a primeira começa cumha parelha de rostos humanos que se vam afastando até que a pantalha se enche de minúsculas caras; a segunda começa com planos de detalhe de graus de area, que igualmente se afastam até converterem-se em simplesmente area.
No primeiro caso, passamos dumha realidade identificável (dous rostos) a umha massa abstracta de caras dificilmente reconhecíveis; no segundo, os irrealmente ampliados graus de area só os identificamos como tais quando a cámara se afasta o suficiente para deixar-nos ver a “area” como massa.
Quigem duplicar o prazer do relato, como figera com A mulher das dunas, e merquei a novela de Abe. Imaginava que a riqueza filosófica da película se repetiria, potenciada, no texto literário. Nom sei se podo falar de decepçom, mas o livro de Abe nom chega às alturas expressivas, e mesmo narrativas, da película. Os tres cadernos que o protagonista e narrador da novela deixa para a sua mulher nom chegam à intensidade e ao terror das images de Teshigahara. A narraçom cinematográfica mesmo se enriquece com a criaçom do cirurgiám (ausente na novela: o próprio protagonista é o fabricante da máscara) e a intercalaçom dumha narraçom secundária (a tragédia dumha fermosa moça desfigurada pola bomba atómica), que na novela se reduz ao argumento dumha película recolhido numha média dúzia de páginas.
A presença do cirugiám permite ricos debates filosóficos, mas tamém leva a narraçom por outras derrotas. Os impulsos assassinos da “máscara” desabafam-se nel, e o seu laboratório é um logro de surrealismo e expressionismo visual. Desenhados polo arquitecto Arata Isozaki (conhecido entre nós por ser o criador do Domus corunhês e o autor dos poemas que pontuam a película de Taka Iimura Ma: Space/Time in the Garden of Ryoan-Ji), os debuxos, as próteses e os duchampianos biombos transparentes que decoram o laboratório contribuem em grande medida ao éxito visual do filme.
A película é definitivamente melhor que a novela, mas temos que lembrar que se basea num guiom do próprio novelista. Abe tivo a rara oportunidade de reescrever a sua novela e, neste caso, convertida em guiom, podemos afirmar que a melhorou.