Voyager. A inóspita poesia de Kurt Waldheim

Voyager cubertaAlberte Pagán. Kurt Waldheim, político católico e conservador do Partido Popular Austríaco, foi secretário-geral da ONU (1972-1981) e presidente de Áustria (1986-1992). Em 1985, durante a pré-campanha eleitoral, publicou No olho do furacám. Estas memórias aspiravam a dignificar a sua figura política, mas o efeito foi o contrário: de imediato aflorou o seu passado, que o autor pretendia dissimular, como oficial nazi. Isso nom impediu que ganhasse as eleiçons. (Por que?, pergunta el incrédulo, detendo a cunca de café a meia altura: Como a gente pode votar por um nazi? A gente votou polo mesmo Hitler, argumenta ela. À gente nom lhe molesta o patriarcado nem o capitalismo nem o nazismo nem a guerra: o que lhe molestam som os excessos –assassinato, desfeita ecológica, genocídio, crimes de guerra– do machismo e do liberalismo e do nazismo e da guerra. O que nom quer saber a gente é que tanta morte e violência e destruçom planetária nom som excessos senom a essência mesma de patriarcado, capital e nazismo. A gente denuncia os crimes de guerra mas nega-se a proibir as armas e ilegalizar a guerra. E é assi como nas naves espaciais Voyager, que estám a explorar o espaço interestelar, viaja um disco de ouro com a mensage de paz dum nazi, daquela secretário-geral da ONU, é dizer, representante do Planeta Terra, para os seres inteligentes que vivam além de Plutom. Se a imagem nom agrada, o remédio nom está em romper o espelho.)

Em 2011 Srikanth Reddy publicou o poemário Voyager, composto de três livros e umha secçom de epílogos. A poesia, mais narrativa que lírica, surpreende pola falta de continuidade entre um verso e o seguinte, como se cada linha se quigesse independentizar aforisticamente da estrofe que a acolhe, como se autor estivesse a escrever com vozes prestadas. “O mundo é o mundo”, começa o primeiro livro, e pouco despois: “os mortos nom param na tumba”. Nesta primeira parte, escrita em terceira persoa, fala-se da guerra (“fracasso da forma”) e da morte (que “pode ser um cámbio de estilo, mas com certeza nom de substáncia”). “El conhecia a topografia da injustiça”, di o poema, sem especificar a identidade do pronome. Mas pronto aparece o nome “Kurt Waldheim”, que nom tem “capacidade de paz”.

Voyager p 64Ler o livro de Reddy é realizar um trabalho de investigaçom. O autor vai deixando pistas que o público leitor há de seguir para interpretar o significado destes estranhos versos e para desvelar a identidade deste insólito personage. O segundo livro, escrito em pequenos fragmentos em prosa, introduz umha primeira persoa, um narrador que está a elaborar um dossier sobre “este home” que foi “Secretário-Geral das Naçons Unidas” e que “com toda probabilidade conhecia as execuçons em massa de grupos de persoas”. Este narrador mesmo desvela o seu método de trabalho: “Comecei a tachar palavras do seu livro sobre a paz mundial”; e pouco despois: “Tivem que tachar o seu mundo de novo”; e mais adiante: “Tachar cenas dum texto nom deveria significar rejeitar o texto inteiro”. Este processo de tachado, visível em certas partes, converte a frase “levar a cabo programas” em “acarrejar corpos”: o secretário-geral da ONU como “alter ego” do oficial nazi. E para que nom fiquem dúvidas sobre a identidade de “este home”: “Nom pretendo julgar aqui a persoa do Dr. Waldheim.”

O terceiro livro é o mais extenso. Os versos som curtos e espalham-se pola página em tercetos quebrados. Waldheim fala agora em primeira persoa: “Empecei a escrever as minhas memórias”, di. Os três epílogos da última secçom repetem o mesmo texto (fragmento dessas “memórias” nas que se rememora o verao de 1945), completamente tachado agás por umhas poucas palavras aqui e acolá: em cada umha das versons do epílogo as palavras recuperadas, e portanto as frases que com elas construímos, som diferentes.

Nesta primeira leitura intuímos a técnica utilizada por Reddy. Já desde o epígrafe, tirado da Divina comédia (Morti li morti e i vivi parean vivi), o autor introduz palavras e frases tachadas que lemos e nom lemos, que identificamos mas temos que deixar de lado na nossa leitura, o que nos fai conscientes do cámbio de significado operado: o verso de Dante “Os mortos estavam mortos e os vivos pareciam vivos” converte-se na voz de Reddy em “os mortos pareciam vivos”. Voyager part 3 originalNo terceiro livro o narrador apresenta-se do seguinte jeito: “Eu        Kurt Waldheim”, identificando-se e ocultando-se a um tempo, de igual jeito que nas suas memórias se dá a conhecer ao tempo que agacha o seu passado mais comprometido. Umhas páginas antes umha negra sombra paira sobre o poema: “Adolf Hitler”; e começamos a tirar conclusons.

Numha nota final o autor remete a um endereço na Rede no que explica e ilustra o procedimento de escritura. Reddy colheu a versom original inglesa das memórias de Waldheim e, num processo de reinterpretaçom ou leitura entre linhas, elegeu certas palavras com as que construir o poema. Cada umha das três secçons do poemário é resultado dumha leitura diferente do mesmo texto (como se exemplifica nos três epílogos): nom há progresso senom simultaneidade entre os três livros, as três leituras do mesmo original. Todas as palavras som de Waldheim, a ordem na que aparecem no poema (a que permite construir frases e versos) é a do original. Voyager é um bom exemplo político de poesia do borrado.

“Os mortos nom param na tumba”, repete-se nos três livros. “Se a imagem nom agrada, o remédio nom está em romper o espelho.”

 

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